terça-feira, 13 de outubro de 2015


Esta fotografia tem 10 anos. Coincide como dia da minha chegada a Lichinga, capital de província do Niassa, a província mais pobre de Moçambique. Cheguei com o objetivo de ser missionário. Diziam-me que o missionário era aquele que deixava tudo para trás e partia, para ajudar os outros que precisavam da sua ajuda. Não era assim que me sentia. Sentia-me como uma criança a quem era dado um novo brinquedo, um astronauta que aterra num planeta desconhecido. Sim, tinha ido lá para ajudar, mas acabei por ser mais ajudado do que propriamente útil a todos aqueles que encontrei por lá.

Estive em Lichinga 14 meses. Cheguei a 13 de outubro de 2005 e saí a 30 de novembro de 2006. Mas o Ricardo que saiu não foi o Ricardo que chegou. Do tempo que lá estive, lembro-me de muito, e as fotos que tirei e as crónicas que escrevi lembram-me do resto. Sorri, descobri, apaixonei-me, vivi, chorei, bati com as portas de tanta raiva... cresci como pessoa e como cristão.

Passaram dez anos desde que pus pé naquela terra amada por Deus e esquecida pelos homens. Ia com a missão de ajudar a cuidar de uma biblioteca e de um centro de informática, mas o que vivi foi tão mais que isso que estas linhas não chegariam para descrever. Fui com medo, medo de deixar o conforto do lar, o aconchego dos amigos e de uma vida que estava certa e sem surpresas. Tinha medo de regressar e não encontrar quem deixei, porque a vida continua e não pára. Mas quem ficou deste lado acompanhou-me no coração, na parede do meu quarto e nos mails, telefonemas, cartas e encomendas que chegavam a um ritmo compassado com a saudade que apertava com a distância.

O papel que me cabia era de responsabilidade, e assim procurei desempenhá-lo. Não sem algumas contrariedades, coube-me a maior honra que pode caber a quem trabalha para o desenvolvimento: pegar no excelente trabalho que, antes de mim, muitos leigos tinham preparado, e entregar o projeto à diocese, para ficar a ser gerido pelos recursos humanos que tínhamos formado e que, agora, podiam caminhar sozinhos, deixando-nos disponíveis para outros projetos, outras ideias, outras necessidades.

Hoje, dez anos depois, olho para trás e consigo perceber que tudo o que sou devo-o ao meu tempo de missão. Se não tivesse dado boleia à P. naquela terça-feira para a formação dos Leigos para o Desenvolvimento, nada disto teria acontecido, e portanto ela também tem muito culpa no cartório. Hoje sou jornalista porque, ao ser entrevistado para uma revista por causa do meu tempo de missão, me foi aberta a possibilidade de colaborar com a revista Família Cristã, para quem ainda hoje trabalho. Hoje sou fotógrafo porque ganhei o gosto pela fotografia ao fotografar aquele céu que parecia não ter fim, aquela gente sorridente e extrovertida, que dançavam como se nunca tivessem feito mais nada na vida. Hoje viajo porque percebi, naquele ano, que o mundo tem maravilhas escondidas que precisamos de conhecer, se queremos ser pessoas mais felizes, mais ricas, mais conscientes do que nos rodeia. Hoje sou blogger porque, ao chegar, montei um blogue para contar as minhas desventuras e percebi o gozo que me dá escrever e partilhar com os outros as minhas ideias.

Relembro com saudade o Lago Niassa, e o matope que me enchia os pés quando andámos a tirar uma carrinha da lama; o sumo de cenoura delicioso da Ir. Lídia; os alunos do jornal, com quem reunia para falarmos de jornalismo e poesia; a biblioteca, e a importância que o espaço tinha para os estudantes que, sem outros recursos, se viravam para nós à procura de bases para o seu estudo; a informática e a importância de termos cursos que permitissem aumentar a empregabilidade das pessoas da cidade; as noites de passada na Gold Nigth (sim, assim mesmo, como estava escrito na publicidade à entrada); aquele coro de vozes da cadeia masculina, que se elevava aos céus qual som divino dos mais puro dos coros; a Sara, o bebé de apenas dois dias que conhecemos no sopé do Monte Mitucué; os jogos de futebol no Mancheste de Sanjala, o único branco a jogar o campeonato distrital de Lichinga; os ensaios para as celebrações litúrgicas; o Martinho e a tarde na sua palhota, a falar sobre o mundo e os prédios de 40 andares que era impossível não caírem, se feitos de lama e argamassa; o pau preto, o Mussa e o vendedor que vinha do Malawi na sua bicicleta, e me trocou artesanato por uns calções meus que gostou muito; os passeios de bicicleta ao entardecer, por estradas que pareciam não levar a lado nenhum, até que, de repente, surgia uma pequena aldeia no horizonte da curva; o Ricardo, o filho da Leocádia a quem puseram o meu nome, que apenas conheci por fotos; o Pe. João, a sua quinta e a alegria por ver as maçãs a darem fruto nas macieiras que vieram de Portugal; o Pe. Joaquim, o grande obreiro da diocese de Lichinga, com o seu sorriso contagiante; o Francelino, o Félix, o Euse, o Poeta que não chora, aquele aniversário no bairro; a poesia e a prosa moçambicana, símbolos de liberdade de um país que queria nascer de novo e rasgar fronteiras de liberdade e igualdade para todos, mas se via preso no aglomerado de mentira e corrupção que poluía a nação governativa; tantas pessoas, coisas e acontecimentos que guardo com saudade.

Também houve tristezas, claro. Desde logo e à cabeça, aquele telefonema às 6h30 da manhã do dia 6 de novembro. Lembro-me como se tivesse sido hoje: o choque, a dor, o ter de acordar a Rita e a Carla para lhes dar a notícia, o receber os telefonemas preocupados de Portugal, a oração comunitária da comunidade religiosa em Lichinga... tudo por Ti, só por Ti, porque nos tinhas deixado da forma mais cruel. A Tua memória, Lina, o teu sorriso, estão ainda bem vivos dentro de mim e de todos os que contigo privaram durante a tua passagem nesta terra.

Acima de tudo, fica a certeza de que este ano de missão mudou para sempre a minha vida, e para melhor. Tornei-me uma pessoa mais aberta aos outros, compreendi como nunca as dinâmicas deste mundo, aprendi que podemos sempre fazer melhor se ouvirmos e escutarmos o outro... tornei-me mais feliz.

E é por isto que me entristece saber que, no ano passado, os Leigos para o Desenvolvimento, os grandes responsáveis pela minha ida em missão, estão com falta de voluntários para as suas missões. Sem voluntários, o trabalho extraordinário que se faz em missão no desenvolvimento e estabelecimento de projetos que visam a educação, o desenvolvimento sustentado dos povos, está colocado em causa. Apenas porque não há gente disponível para os executar. O que se passa com os jovens de hoje? Porque é que não se deixam desinstalar por uma proposta destas? Porque é que não querem ir à procura da sua felicidade? Estaremos nós tão egoístas que não somos capazes de abdicar de nós em prol de quem mais precisa? Não quero acreditar nisso, quero apenas acreditar que as pessoas não conhecem a proposta dos Leigos para o Desenvolvimento. Se é esse o caso, as sessões de apresentação um pouco por todo o país vão agora começar. Jovens recém-licenciados, que se encontram à procura de um rumo, que terminaram o curso e querem dedicar-se a uma causa útil, esta é a vossa hipótese de fazerem a diferença de forma efetiva, de deixarem o mundo melhor do que o encontraram, de contribuírem para fazer os outros felizes...

Vão mesmo querer ficar de fora? Não sabem o que perdem, e eu, dez anos após a minha chegada a terras moçambicanas, afirmo-o com propriedade. Vale mesmo a pena...

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